Criado para garantir o acesso de grupos historicamente sub-representados nas universidades, o sistema de cotas, da forma como é implementado, pode dificultar o ingresso de alunos que têm direito a elas em 1.551 graduações do país.
A Folha chegou ao número após uma análise das notas de corte de 6.146 cursos presentes no Sisu (Sistema de Seleção Unificada), do Ministério da Educação, do primeiro semestre de 2022. Eles são ofertados por universidades públicas e institutos federais de todo o país.
Neles, a nota mínima no Enem necessária para a aprovação é mais alta para cotistas de determinados grupos do que para candidatos inscritos no sistema de ampla concorrência, como estudantes de escola particular.
A situação ocorre em 25,3% do total de graduações do Sisu, em uma ou mais “subcotas”. No total, o número de vagas afetadas é de 6.014, o que corresponde a uma parcela minoritária (5,2%) das reservadas a ações afirmativas.
esde 2019, ano com dados mais antigos disponibilizados pelo MEC, 26.892 vagas de cotistas tiveram essa característica.
Para fazer a análise, a Folha considerou apenas casos em que houve um número de inscritos maior do que a quantidade de vagas. Além disso, foram descartadas as ocorrências em que não havia candidatos inscritos ou aprovados em ampla concorrência, pois nelas a nota de corte é zerada, impossibilitando a comparação.
Considerou-se uma mesma graduação (direito, por exemplo) em turnos diferentes (matutino e noturno, por exemplo) como dois cursos diferentes.
A ocorrência de notas de corte mais altas para cotistas vem sendo apontada por acadêmicos como uma distorção do princípio que norteou a criação das ações afirmativas nas universidades.
A situação decorre da forma como o Sisu operacionaliza a Lei de Cotas, que completa dez anos.
A norma reserva metade das vagas em instituições federais de ensino a alunos que cursaram o ensino médio exclusivamente em escolas públicas. E metade dessas, por sua vez, é destinada a estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo.
A distribuição deve ainda respeitar a proporção de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência de cada estado.
Para contemplar todas as categorias, o Sisu oferece aos candidatos de instituições de ensino federais pelo menos oito tipos de cota, resultantes da combinação desses quatro recortes previstos na legislação: tipo de escola de ensino médio, renda, cor e existência ou não de deficiência.
Na inscrição, o candidato só pode escolher uma dessas modalidades de cota, ou “subcotas”, mesmo que esteja habilitado para outras. Um aluno preto com deficiência, renda de até 1,5 salário e egresso de escola pública, por exemplo, está habilitado para as oito categorias, já que se enquadra em todos os critérios de ação afirmativa, mas só pode escolher uma.
Além disso, as universidades e institutos também têm autonomia para instituir outras modalidades próprias de ação afirmativa.
Como o sistema, ao longo do período de inscrição, atualiza as notas de corte dos candidatos, a opção por determinado curso ou modalidade de cota decorre de uma decisão estratégica: o estudante tende a escolher o curso em que considera ter mais chance de entrar.
Com uma nota de corte mais alta, e sem mobilidade entre categorias de concorrência, o sistema pode deixar de fora um candidato que se inscreveu como cotista e tirou nota maior do que um não cotista, aluno de escola particular.
A análise feita pela Folha mostra que o grupo mais prejudicado por essa distorção é justamente o de alunos de escola pública que não se enquadram em nenhum outro critério de ação afirmativa (cor, renda ou deficiência). É esse tipo de cota que com mais frequência tem nota de corte mais alta que a ampla concorrência.
Um exemplo é a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que tem 17 cursos com essa situação. No de engenharia florestal matutino, por exemplo, o cotista de escola pública tem nota de corte de 642,74, enquanto um aluno que estudou em escola particular precisa tirar 21 pontos a menos (621,66) para entrar.
Em nota, a universidade afirma que a situação já havia sido detectada em anos anteriores. Em muitos casos, diz, esses cotistas com altas notas eram egressos de escolas federais de ensino médio, que tradicionalmente têm alto desempenho.
“Ainda que não seja um percentual significativo [de vagas nessa situação], pode ser considerado um elemento para aprimorar o sistema de entrada por meio da reserva de cotas”, diz a UFMG.
A universidade observa ainda que, no Brasil, 87,7% dos estudantes do ensino médio estão na rede pública de ensino e apenas 50% das vagas são reservadas a eles, o que pode impactar a relação de candidatos por vaga, tornando as cotas mais disputadas.
Mas a maior discrepância está na UFJ (Universidade Federal de Jataí), em Goiás. No bacharelado noturno de geografia, a pontuação para entrada pela cota de escola pública foi de 621,56, e a da ampla concorrência, de 424,22, uma diferença de quase 200 pontos.
A ocorrência de casos assim já havia sido detectada em estudo de 2014 feito por pesquisadores do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Eles observaram que em 11% dos cursos parte dos candidatos de ações afirmativas ingressava com notas superiores às dos demais.
“Nesses casos, em vez de funcionar como um piso garantidor de uma presença mínima dos cotistas, o modelo das cotas atualmente empregado acaba por funcionar como um teto para essa presença, restringindo a possibilidade de mais estudantes provenientes dos grupos beneficiários de entrar no ensino superior”, escreveram Luiz Augusto Campos, João Feres Júnior e Verônica Toste Daflon.
Para Campos, a persistência da situação revela uma distorção que já deveria ter sido corrigida pelo Ministério da Educação, oito anos depois do trabalho.
Em sua avaliação, para evitar que isso ocorra, o cotista com nota maior que o concorrente da ampla concorrência deveria entrar fora das cotas, permitindo que a vaga de ação afirmativa fosse destinada a outro estudante.
Esse desvio foi também observado em outro estudo, publicado no ano passado no periódico American Economic Journal: Microeconomics, de autoria dos economistas Inácio Bó, da Southwestern University of Finance and Economics, na China, e Orhan Aygun, da Universidade Bogazici, da Turquia.
Eles constataram a situação ao analisar dados da edição de 2013 do Sisu, um ano após a Lei de Cotas, e classificaram a situação como injusta. “Um estudante de baixa renda, pertencente a uma minoria e com uma nota alta no exame pode ser rejeitado, enquanto um estudante branco, de alta renda e com uma nota baixa é aceito”, escreveram.
O que dizem o MEC e as universidades Procurado pela reportagem, o MEC afirmou apenas que o candidato que atenda aos critérios das cotas pode escolher se quer concorrer pela reserva de vagas e dispõe de informações para tomar a decisão.
“Um estudante que atenda aos critérios exigidos pela Lei de Cotas verá no sistema informações da nota de corte dos cursos, por modalidades de concorrência, durante todo o período de inscrição, podendo escolher se quer disputar uma vaga pela modalidade de ampla concorrência, lei de cotas ou ação afirmativa própria das instituições que ofertem essa última opção”, diz a pasta em nota.
De forma geral, as universidades procuradas pela Folha afirmaram que pouco podem fazer, uma vez que o Sisu é operado pelo MEC.
É um fenômeno nacional, diz Kátia Cilene, pró-reitora de Graduação da Ufersa (federal do Semi-Árido). “A tendência é que haja uma migração da concorrência por cotas para a ampla concorrência, até que os pontos de corte voltem a ficar mais altos e aconteça uma nova migração inversa”, avalia.
Algumas instituições, como a UFV (federal de Viçosa), a UFRN (federal do Rio Grande do Norte) e a UFPel (federal de Pelotas) afirmam que, na convocação dos candidatos da lista de espera, os cotistas são colocados para concorrer também fora das cotas, aumentando a chance de admissão nessa etapa subsequente.
Outras instituições disseram não ver problema no fato de cotistas terem uma nota de corte mais alta. “A cota é um direito, não uma obrigação, sendo livre o candidato que a ela tem direito poder se inscrever na ampla concorrência”, disse a UFC (federal do Ceará).
A UFPE (federal de Pernambuco) afirma que a situação é resultado da “excelência da qualidade do ensino público”.
Há ainda questões locais. A Unemat (estadual do Mato Grosso) diz que um dos fatores que influencia a nota de corte mais alta entre cotistas é a oferta de cursos de licenciatura no interior do estado, tradicionalmente mais procurados por alunos da rede pública. A instituição reserva 60% de suas vagas para ação afirmativa. (Foto: Reprodução )