Dados inéditos da Sociedade Brasileira de Queimaduras de centros de tratamento de queimados de 19 estados mostram que, desde 20 de março, 445 pessoas foram internadas com queimaduras relacionadas ao álcool 70% na sua forma gel ou líquida.
O que mais chama a atenção dos médicos, no entanto, são os acidentes com álcool em gel, que inexistiam até então.
A data também coincide com uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que flexibilizou a venda do álcool líquido 70%, mais inflamável, em embalagens de um litro (o que era vetado por norma de 2002).
Não há dados oficiais sobre queimaduras por álcool nos anos anteriores. Segundo o Ministério da Saúde, elas não são contabilizadas em separado. Os CIDs (Código de Internacional de Doença) englobam queimaduras por corrente elétrica, radiação, raios, exposição ao fogo e contato com uma fonte de calor ou substâncias quentes.
“Com mais exposição do álcool no uso doméstico, houve aumento brusco de queimaduras. O álcool em gel deve ser usado quando a pessoa estiver na rua. Em casa, a higienização deve ser feita com água e sabão”, diz o cirurgião José Adorno, presidente da SBQ.
A norma da Anvisa que flexibilizou a venda do álcool 70% tem validade de 180 dias–vai até setembro. Há uma pressão para que não seja prorrogada.
“A medida representou um dano à sociedade. É uma luta antiga retirar o álcool do ambiente domiciliar, fazer com que as pessoas entendam que o álcool, em gel ou líquido, é uma arma”, afirma Adorno.
Em nota, a Anvisa diz desconhecer o aumento de acidentes envolvendo álcool 70%, que a flexibilização da venda ocorreu pela falta de álcool em gel no mercado no início da pandemia de Covid-19 e que a medida vale até setembro.
Segundo Adorno, além do álcool 70% ser mais inflamável, os frascos grandes têm mais chances de explodir quando próximos ao fogo, causando queimaduras profundas, que deixam cicatrizes e problemas funcionais.
Em alguns centros de tratamentos de queimados, esses ferimentos já respondem por até 40% das internações, segundo a Sociedade Brasileira de Queimaduras. A taxa de óbito varia entre 5% e 8% dos casos.
Na Bahia, o centro do Hospital Geral do Estado, o álcool 70% representa hoje a maior causa das internações por queimaduras. Até 2019, a água quente liderava, seguida de um conjunto de líquidos inflamáveis, como etanol e gasolina.
As internações passaram de três casos em março para 17 neste mês. O cirurgião Marcus Vinícius Barroso, coordenador do centro, diz que chegaram muitos pacientes com graves queimaduras em razão do uso do álcool em gel.
Um deles foi um jovem que passou o produto nas mãos, nos braços e na roupa e foi acender uma churrasqueira. “A roupa dele pegou fogo. Ele chegou aqui com 40% do corpo queimado, queimaduras de terceiro grau. Tivemos que fazer umas dez cirurgias. Terá sequelas para o resto da vida.”
Para o médico, as pessoas automatizaram o uso do álcool em gel em casa e se esquecem que ele é um produto inflamável. “O álcool gel é a 70%. O álcool que a gente tinha antes em supermercado era 42%, 46%, que não é tão fácil de inflamar. Em casa, as pessoas só devem usar água e sabão.”