O uso de testosterona em gel tem se popularizado entre adultos para tratar condições como fadiga, perda de libido e sarcopenia. Mas um caso que ganhou repercussão internacional levantou um alerta: uma bebê de apenas 10 meses, na Suécia, apresentou alterações genitais após ter contato com a pele do pai, que havia aplicado o hormônio.
Para entender os riscos da exposição involuntária de crianças a medicamentos hormonais de uso adulto, o Saúde Nossa Voz conversou com a médica Carolina Almeida, especialista em tratamentos da obesidade e da sarcopenia.
“É um caso que ganhou a mídia como se fosse raro, mas não é. Na verdade, é algo que pode acontecer com facilidade. A gente precisa raciocinar o seguinte: se há absorção na pele de quem está passando o hormônio, por que não haveria absorção na pele de um bebê, que é mais fina, mais sensível e mais vulnerável?”, afirma a médica.
Ela explica que não se trata de um efeito colateral imprevisível, mas de um problema de orientação.
“O culpado não é o hormônio. O problema é a falta de orientação. Toda vez que eu prescrevo qualquer formulação tópica para um paciente, eu faço questão de explicar verbalmente e também por escrito que ele não pode ter contato físico com outras pessoas, especialmente crianças, por um tempo após a aplicação. É um cuidado básico, mas que muita gente ignora.”
O produto é absorvido pelo organismo através da pele, e, segundo a médica, continua ativo mesmo após a secagem aparente. Por isso, o simples contato com outras pessoas, especialmente bebês, representa um risco.
“O que parecia um cuidado de rotina, como segurar o bebê no colo logo após a aplicação pode se tornar uma ameaça silenciosa. Em adultos, a pele é mais espessa, mas em crianças pequenas, qualquer substância pode penetrar com muito mais facilidade. Nós usamos cremes com antibiótico, com ácido, com ativos fortes. Tudo isso pode ser perigoso para os pequenos.”
Segundo Carolina Almeida, com bebês não há uma margem segura de contato. A recomendação é clara: evitar completamente o contato entre a pele que recebeu o hormônio e a pele da criança.
“Com adultos, a gente orienta que o contato com outras pessoas seja feito apenas meia hora depois da aplicação, quando a pele já estiver completamente seca. Mas com bebês, não tem margem segura. A recomendação é que o produto seja aplicado em regiões que não tenham contato com a criança, como a virilha ou os testículos.”
O caso da bebê sueca envolveu alterações na genitália externa, mas outras reações também são comuns, segundo a médica.
“O que mais vemos é uma puberdade precoce, porque o corpo da criança começa a responder ao hormônio como se estivesse amadurecendo antes da hora. Aparecem pelos, alterações nos genitais, nas meninas há crescimento do clitóris, e se o contato for contínuo, pode afetar o desenvolvimento dos órgãos internos e até a fertilidade.”
A especialista reforça que não existe uma dose segura de hormônio para crianças, e o contato repetido é o que costuma causar os danos mais sérios.
“Uma única exposição acidental geralmente não é suficiente para causar um problema grave. O risco aumenta quando a criança é exposta todos os dias, por exemplo, no colo do pai ou da mãe que usa o produto e não toma os devidos cuidados. Esse acúmulo diário é o mais perigoso.”
Caso a criança tenha tido contato com a pele de um adulto que usou o hormônio, a médica recomenda uma ação imediata.
“A primeira coisa a fazer é lavar a área da pele da criança com bastante água e sabão, o mais rápido possível. Quanto menor o tempo de exposição, menor o risco de absorção. A lavagem pode impedir que o hormônio penetre em quantidade suficiente para causar danos.”
Apesar da testosterona ter sido o foco do caso que ganhou repercussão, outros produtos comuns também oferecem risco.
“Existem outras substâncias que os adultos usam com frequência e que também podem ser perigosas para crianças. Pomadas com ácido, hidratantes com ativos fortes, cremes hormonais como estradiol ou gestrinona… Tudo isso pode causar dermatite, alterações hormonais e até problemas de crescimento e fertilidade se a criança for exposta continuamente.”
Para quem realmente precisa utilizar a testosterona ou outro hormônio em gel, a médica orienta uma série de cuidados.
“O ideal é aplicar em regiões que não tenham contato com outras pessoas, como a virilha, e sempre esperar a pele secar completamente. Depois, é fundamental lavar as mãos com água e sabão. Não é só jogar uma aguinha, é lavar de verdade. Porque o hormônio também é absorvido pelas mãos, e se você tocar o bebê depois, pode transferir o produto sem perceber.”
Carolina Almeida também recomenda outras vias de administração mais seguras.
“Hoje temos implantes hormonais subcutâneos que liberam o hormônio de forma controlada e reduzem esse risco de transferência por contato. Mas mesmo esses métodos só devem ser utilizados sob rigorosa indicação médica. Hormônio não é cosmético. É tratamento.”
A médica reforça que a exposição contínua e prolongada pode gerar impactos irreversíveis.
“A exposição precoce a hormônios pode desregular o desenvolvimento da criança como um todo. Em casos mais graves, pode levar à infertilidade, alterações na produção hormonal natural, puberdade antecipada e até problemas de crescimento. É um risco real, e é por isso que é tão importante falar sobre isso com clareza.”