Imagine receber uma ligação e reconhecer de imediato a voz do seu filho, de um irmão ou de um amigo pedindo ajuda. O tom, o jeito de falar, até as pausas são familiares. Só que, na verdade, não é ele. É um golpe: criminosos estão usando inteligência artificial para clonar vozes e aplicar fraudes, geralmente pedindo transferências via Pix.
Essa nova modalidade de crime cibernético tem crescido em várias partes do país. Para entender como ela funciona e o que fazer para se proteger, o Nossa Voz conversou com o delegado Andrei Fragoso, especialista em crimes cibernéticos, que atua no Sertão de Pernambuco.
“Com 5 a 8 segundos já é possível clonar a voz de qualquer pessoa”
O delegado explica que, embora pareça uma novidade, a clonagem de voz por inteligência artificial já vem sendo estudada há alguns anos e hoje, está ao alcance de qualquer pessoa com acesso à internet.
“Para quem trabalha no âmbito policial, isso não é exatamente novo. A gente já acompanhava pesquisas sobre engenharia social feita por voz desde 2021. O que surpreende é a facilidade atual: com apenas de 5 a 8 segundos de gravação, já é possível clonar a voz de qualquer pessoa, sem muito esforço técnico. Quanto mais material de áudio o criminoso conseguir, como podcasts ou vídeos, mais perfeita fica a imitação”, explica Fragoso.
Ele conta que há softwares gratuitos na internet que fazem esse tipo de clonagem com qualidade suficiente para enganar familiares próximos.
“Existem sites de uso livre onde a pessoa faz o upload do áudio, e o sistema compila o timbre e o ritmo da fala. O resultado é uma voz praticamente igual. Quando o golpista adiciona isso a informações pessoais colhidas nas redes sociais, o golpe se torna muito convincente”, afirma.
Segundo o delegado, os criminosos costumam criar histórias urgentes para convencer a vítima a fazer uma transferência imediata. Os casos geralmente envolvem acidentes, problemas de saúde ou perda de celular.
“Eles fazem o que chamamos de engenharia social. Pesquisam informações da vítima, dos amigos e da família, e criam um enredo que pareça real. Ligam dizendo que estão com o celular descarregado, que tiveram um acidente na estrada ou que precisam pagar algo com urgência. A voz clonada ajuda a convencer, e a vítima, sem tempo para pensar, acaba fazendo o Pix”, detalha o delegado.
Em Minas Gerais, um caso chamou atenção: o filho de um radialista fez uma transferência após ouvir um áudio idêntico ao do pai. A voz clonada foi produzida a partir de trechos do programa de rádio que ele apresentava diariamente.
“Eles captaram o áudio do programa, trataram o som e produziram uma mensagem com o mesmo tom de voz e emoção do pai. O filho acreditou que realmente era ele e fez o depósito. Depois descobriu que tudo era fraude”, contou Fragoso.
“Até ligações mudas podem ser usadas para capturar sua voz”
O delegado alerta que até aquelas ligações silenciosas de números desconhecidos podem servir para coletar o padrão vocal das vítimas.
“A pessoa recebe uma ligação, atende e fala ‘alô, quem é?’. Às vezes não há resposta do outro lado, mas o sistema já gravou segundos suficientes da sua voz para começar o processo de clonagem. Isso pode parecer inofensivo, mas é justamente o que os criminosos precisam”, explica.
Por isso, ele orienta a desconfiar de chamadas sem voz e evitar conversar com números desconhecidos.
“Se a ligação for estranha, o melhor é desligar imediatamente. Evite dar informações, e nunca diga seu nome completo ou dados pessoais. Esses segundos de conversa podem ser suficientes para alimentar o sistema dos golpistas”, alerta o delegado.
Apesar de ainda haver poucos registros oficiais em cidades do interior, como Petrolina, o delegado afirma que o crime já está em curso e tende a crescer.
“A gente sabe que as pessoas têm vergonha de registrar ocorrência quando caem em golpes digitais. Mas é fundamental que procurem a delegacia. Quando recebemos boletins de ocorrência com o mesmo tipo de narrativa, conseguimos identificar padrões e agir preventivamente. O registro pode evitar que outras pessoas sejam vítimas”, explica Fragoso.
IA também tem sido usada em chantagens com imagens falsas
Além da clonagem de voz, a manipulação de imagens com inteligência artificial tem se tornado uma ferramenta perigosa nas mãos dos criminosos. O delegado relata casos de pessoas, inclusive idosas, que foram chantageadas com fotos íntimas falsas.
“Nós temos casos em que a pessoa idosa recebeu mensagens com imagens dela em situações íntimas — imagens que nunca existiram, mas foram criadas por IA. Os golpistas exigiam dinheiro para não divulgar o conteúdo. É um crime grave, que atinge a dignidade e causa abalo psicológico enorme”, explica Fragoso.
Ele reforça que, nessas situações, a orientação é não pagar e procurar a polícia imediatamente.
“Quando o criminoso percebe que a vítima teme a exposição, ele ganha poder. O certo é registrar a ocorrência, porque a polícia tem recursos tecnológicos para rastrear o autor e identificar os dispositivos usados”, acrescenta.
Como se proteger
O delegado lista uma série de cuidados simples que podem impedir golpes:
- Desconfiar de ligações de números desconhecidos ou mudos;
- Não clicar em links recebidos por SMS ou WhatsApp;
- Nunca passar dados pessoais por telefone;
- Confirmar pedidos de dinheiro com a pessoa por outro canal;
- Usar aplicativos de bloqueio de chamadas fraudulentas, como o Royscall;
- E, se possível, criar um código familiar para confirmar emergências.
“A dica do código é muito útil. Combine uma palavra com sua família — algo simples, como ‘coração’ ou ‘passeio’. Se um parente mandar mensagem pedindo dinheiro, pergunte o código. O golpista não vai saber e o golpe cai por terra”, orienta Fragoso.
“O golpe é tecnológico, mas a prevenção é humana”
Ao final da entrevista, o delegado resume com uma reflexão: a tecnologia usada nos golpes é sofisticada, mas a prevenção continua dependendo da atenção e da desconfiança das pessoas.
“A clonagem de voz por IA é uma realidade e vai se tornar cada vez mais comum. Mas o que ainda faz a diferença é a atitude: confirmar, checar e não agir por impulso. É melhor parecer desconfiado por alguns minutos do que perder dinheiro ou a paz por causa de um golpe”, conclui o delegado Andrei Fragoso.



