O juiz aposentado que virou réu na Justiça de São Paulo sob a acusação de falsidade ideológica e uso de documento falso prestou depoimento à Polícia Civil em 2 de dezembro de 2024 e, três dias depois, se mudou do endereço onde vivia na capital paulista.
Desde então, o paradeiro do juiz Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, de 67 anos — que na verdade se chama José Eduardo Franco dos Reis, segundo o Ministério Público —, é desconhecido pelos investigadores. O caso foi revelado pelo g1 nesta quinta-feira (3).
Nesta sexta-feira (4), o juízo da 29ª Vara Criminal de São Paulo expediu mandado de citação para que Reis seja comunicado sobre a ação penal contra ele e possa apresentar defesa. A denúncia foi recebida pela Justiça na segunda-feira (31).
No depoimento à polícia, ele se apresentou como José Eduardo Franco dos Reis e disse que Wickfield é seu irmão gêmeo, que foi dado para adoção ainda criança.
O g1 busca contato com o magistrado, mas não conseguiu localizá-lo até a publicação desta reportagem.
A história
Segundo as investigações, Reis nasceu em 16 de março de 1958, conforme registro feito no cartório de Águas da Prata (SP). Em 1973, ele tirou RG com seu nome verdadeiro. Já em 1980, obteve um RG com o nome falso de Wickfield apresentando uma certidão de nascimento com dados falsos.
Sempre com o nome de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, que dizia ser proveniente da nobreza britânica, Reis estudou direito na USP, prestou concurso e ingressou na magistratura paulista em 1995. Atuou como juiz por 23 anos, até se aposentar em abril de 2018.
De acordo com a denúncia da Promotoria, as motivações para a criação da personalidade fictícia continuam desconhecidas. Ao mesmo tempo, ele manteve em dia os documentos da identidade verdadeira.
As impressões digitais dele foram coletadas e comparadas eletronicamente no banco de dados da Polícia Civil. Essa tecnologia passou a ser aplicada em 2014 a todas as pessoas que tiram RG em São Paulo.
A comparação das impressões digitais apontou indícios de que havia duas pessoas com marcas idênticas. Os investigadores, então, passaram a analisar os documentos dessas duas pessoas e descobriram ser uma só.
Na análise documental, os investigadores descobriram que as certidões de nascimento de Reis e de “Wickfield” tinham o mesmo número de registro no mesmo cartório do município de Águas da Prata, mas o restante dos dados era diferente.
Reis nasceu em 16 de março de 1958; “Wickfield”, em 10 de março daquele ano. Reis é filho de Natalina e José; “Wickfield”, de Anna Marie Dubois Vincent Wickfield e Richard Lancelot Canterbury Caterham Wickfield.
O cartório informou aos investigadores que a certidão de nascimento de Reis está registrada no local, mas a de Wickfield não tem registro.
Enquanto os investigadores aprofundavam as análises sobre a suspeita de duplicidade, o sistema do Poupatempo foi bloqueado automaticamente e impossibilitado de emitir uma nova via do RG de Wickfield.
O juiz, então, foi informado pelo Poupatempo de que deveria ir ao Instituto de Identificação para regularizar a situação — o que é praxe nos casos de suspeita de duplicidade, porque pode haver um engano do sistema.
Ao chegar ao instituto em 2 de dezembro passado, o juiz foi interrogado pelo delegado Raphael Zanon da Silva. Ali, ele se apresentou como José Eduardo Franco dos Reis e disse trabalhar como artesão.
Durante essa temporada, Reis teria ido ao Poupatempo para solicitar um RG para o suposto irmão gêmeo, que seria um professor, e não o juiz.
A história, porém, não convenceu a polícia e o Ministério Público. Em janeiro, investigadores foram até o endereço do juiz Wickfield, na Vila Mariana, zona sul da capital paulista, e ouviram do síndico do prédio que o magistrado se mudou em 5 de dezembro sem informar para onde.
O que diz o Tribunal de Justiça
“Em relação ao juiz aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, acusado pelo Ministério Público de usar identidade falsa, o TJSP informa que o presidente Fernando Antonio Torres Garcia decidiu, hoje (4), suspender administrativamente, até nova ordem, pagamentos de quaisquer naturezas que a ele seriam feitos.
O TJSP reitera que há questão pendente de apreciação no âmbito jurisdicional e que o Poder Judiciário não pode se pronunciar a respeito de efeitos de eventual condenação (artigo 36, inciso III, da Lei Orgânica da Magistratura – Lei nº 35/79, que veda aos magistrados se manifestarem, por qualquer meio de comunicação, a respeito de processos pendentes de julgamento). Observe-se, por fim, que o processo tramita em segredo de justiça”.
Fonte: G1