Hoje no Nossa Voz, a pauta foi o Transtorno do Espectro Autista (TEA), condição que afeta o neurodesenvolvimento e que tem ganhado cada vez mais visibilidade no Brasil. A entrevistada foi a Dra. Tatiane Alves, neuropediatra e membro da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil, que falou sobre o aumento dos diagnósticos, os sinais de alerta desde a infância, os desafios enfrentados por famílias e profissionais, e os mitos que ainda cercam o transtorno.
“Nos últimos anos, de fato, tivemos um aumento no número de diagnósticos de autismo, e isso tem duas explicações: primeiro, porque os profissionais e as famílias estão com um olhar mais atento, mais treinado para identificar os sinais precoces. E segundo, porque realmente houve um crescimento nos casos. Isso pode estar ligado a vários fatores ambientais e neonatais que hoje temos mais condições de investigar”, explicou a médica logo no início da entrevista.
Ela reforçou a importância do acompanhamento cuidadoso desde os primeiros meses de vida.
“A gente sempre orienta que qualquer comportamento que fuja do padrão esperado no neurodesenvolvimento precisa ser observado com atenção. Por exemplo, quando um bebê não olha no olho da mãe durante a amamentação, não vocaliza sílabas como ‘mamã’ ou ‘papá’ a partir dos 6 meses, ou não demonstra interesse em interagir — isso já acende um sinal de alerta. O olhar fixo, a atenção compartilhada, tudo isso é base para o aprendizado. Quando o bebê olha para a gente, ele está aprendendo com o rosto, com a expressão, com a linguagem.”
Escola como aliada
Tatiane também falou sobre o papel essencial das escolas na detecção dos primeiros sinais.
“A escola é um dos principais ambientes onde o comportamento da criança pode ser comparado ao de outras da mesma idade. Professores experientes percebem quando há algo diferente, como um isolamento social, uma forma atípica de brincar ou uma dificuldade de interação. Porém, muitas vezes, há resistência das famílias em aceitar esse tipo de feedback, o que dificulta o encaminhamento precoce. A gente sempre reforça: escutar os professores e observar o que eles dizem pode fazer toda a diferença.”
Estrutura ainda limitada no SUS
Sobre o atendimento no Sistema Único de Saúde, a médica foi direta ao apontar as limitações.
“Infelizmente, o SUS não tem conseguido atender adequadamente a demanda crescente. Há uma grande dificuldade para conseguir uma consulta com neuropediatra, para realizar o diagnóstico com precisão, e ainda mais para iniciar as terapias. Só o diagnóstico não basta — ele é o ponto de partida. A criança precisa de atendimento contínuo com fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogo, fisioterapeuta, psicopedagogo. É uma abordagem multidisciplinar, que hoje ainda está longe de ser acessível a todos.”
Tatiane lamentou que muitas famílias enfrentam meses — às vezes anos — de espera por uma vaga em serviços especializados.
“Isso acaba sendo cruel com as crianças, porque o tempo é um fator determinante no prognóstico. Quanto antes se começa a intervenção, maior é a chance de evolução positiva. O cérebro da criança é extremamente plástico nos primeiros anos de vida.”
Mitos e verdades sobre o autismo
Questionada sobre a polêmica envolvendo vacinas, a médica foi enfática:
“Não existe nenhuma evidência científica séria que comprove qualquer relação entre vacinas e autismo. Isso já foi investigado por diversas pesquisas em vários países. O que sabemos é que o autismo tem uma origem multifatorial, com influência genética e ambiental. Hoje, por exemplo, temos mais bebês prematuros sobrevivendo graças aos avanços da medicina — e a prematuridade extrema é um fator de risco. Mas não há uma causa única e muito menos algo tão simplista quanto atribuir isso a vacinas.”
Diagnóstico na vida adulta e o impacto no emocional
Tatiane também falou sobre diagnósticos feitos tardiamente, especialmente entre adolescentes e adultos, em especial no público feminino.
“As meninas, muitas vezes, passam despercebidas porque são quietas, não ‘dão trabalho’ na escola. Só que por trás disso há um sofrimento silencioso. Tenho recebido muitas adolescentes e mulheres adultas que viveram a vida toda sendo chamadas de ‘esquisitas’, ‘estranhas’, ou sendo a ‘ovelha negra’ da família. Quando finalmente recebem o diagnóstico, sentem um alívio por entender quem são, mas também trazem um histórico de dor emocional.”
Ela alerta para os riscos das comorbidades que surgem com a falta de diagnóstico precoce:
“A gente fala que o autismo é um dos transtornos que mais carrega comorbidades. Depressão, transtorno de ansiedade, bipolaridade… Muitas vezes, os pacientes chegam até mim com sintomas de ansiedade e, ao investigar mais a fundo, identificamos um quadro de autismo que passou a vida inteira sem ser reconhecido.”
Tatiane encerrou a entrevista reforçando a importância da escuta, da empatia e do acolhimento.
“Mais do que um rótulo, o diagnóstico é uma ferramenta que guia as melhores decisões para a criança, o adolescente, o adulto. Precisamos de políticas públicas mais robustas, escolas mais preparadas, profissionais capacitados e, principalmente, uma sociedade que acolha e compreenda as diferenças.”